Para enterder mais lê a parte 1.
O som da água do chuveiro no chão é forte; a fumaça do banho quente se espalha pelo quarto; o corpo relaxa a cada batida das gotas d'água. Depois da tocaia e da ação, Sandra Vilma do Rosário Aleluia - ou se você preferir, detetive Vilma ou Sandra, a especialista ou Vivi, para sua mãe ou Sandroca, para seu falecido pai ou Filha da Puta, para muitas pessoas - pede descanso. Ao terminar a ducha tão desejada, desliga o chuveiro, abre o blindex, pisa no pano de chão para pegar a toalha e se enxuga. Enquanto ela seca com cuidado o curvilíneo corpo de 1,70 de altura com peso de 68 kg, Sandra (nesse momento, pois é um trabalho de matadora) olha seus cabelos recentemente pintados de loiro para o serviço, tira-os do seu rosto e observa melhor os "espólios" da noite: seu supercílio direito cortado, a bolsa do olho esquerdo roxa, boca cortada e, provavelmente, um dente quebrado. "Me exaltei. Merda tinha que manter o controle" pensa ela, enquanto sai do banheiro, vai até o frigobar na parede oposta da cama do quarto e pega gelo para botar na canela direita que está cortada e inchada.
Sandra sabe o porque de ter se desconcentrado e se machucado tanto durante a briga. Nem mesmo os ensinamentos de jiu-jitsu (faixa preta), muay thai (já é uma atleta avançada) e boxe (foi campeã amadora) a fizeram escapar de umas boas porradas - ela lutou com 12 homens, sendo que dois estavam com facas, um com uma barra de ferro e o restante de mãos nuas mesmo. Ela ajeita os travesseiros moles e recosta com dificuldade (por causa da dor na costela) e liga a tv; vê que passa no Corujão "Desejo de Matar", com Charles Bronson, e cai em prantos. Ela não precisava trabalhar nesse serviço hoje e nem muito menos matar um ex-amigo de infância. Sim, Marcelo Marlon Mangabeira, criminalmente conhecido como Marcelinho Boca Nua, morava na mesma rua que ela quando criança. “Ele vivia lá em casa. Era um bom homem, só foi pro caminho errado. Quando eu ia saber que ele era meu alvo?”, pensava aos prantos. Ela olhou para a bolsa em cima da mesinha de cabeceira do lado direito da cama, de cor marrom encardida, pega-a, abre e procura a carteira de cigarros e o isqueiro; aproveita também para pegar o cinzeiro na gaveta da mesinha. “Seis meses sem fumar pra nada, né? Adeus, clareamento dentário” reflete ela, que voltar a chorar (mais ainda) ao lembrar que Marcelinho Boca Nua tinha esse apelido por não ter dentes – devido ao uso do cigarro e falta de escovação. Na infância, ele tinha o apelido de Marcelinho Bafo de Esgoto - para clarear.
O cigarro está aceso e ela bafora com vontade. Sandra observa o ventilador de teto que mal funciona balançar – ele também está sujo e dando raiva nela, pois aprendeu com a mãe a ter mania de limpeza - e olha para tela da tv. Assistir Charles Bronson e matar um amigo de infância no dia 07/05, para Sandra, é complicado. As imagens da tv mudam automaticamente para a "sessão das lembranças": o canal 1, mostrava imagens de quando ela morava no interior e corria pelo chão de terra batida do sertão junto com as galinhas; no 2, Sandra se via com sua família quando foram para Salvador morar num apartamento de dois quartos no Cabula; já no canal 3, ela andava de bicicleta em frente a seu prédio; no 4, seu pai saía para trabalhar e beijava sua testa; no 5, ele não voltou mais; no canal 6, ela e sua mãe choravam no velório, exatamente em cima do caixão. Seu pai lembrava Charles Bronson - com a pele mais morena e mais parecido com um índio pataxó de bigode mexicano – e adorava os filmes do ator. “Enterrei o velho nesse dia, enterrei o velho nesse dia”, repetia em sua cabeça essa frase e tentava se ajeitar na cama para sentir menos dor.
Depois de alguns minutos, ela acende outro cigarro (já é o terceiro) e volta a pensar na briga – um cisco caiu no olho machucado, então é difícil não lembrar da confusão. Sandra revê a ação desde o seu primeiro movimento: a descida no hotel. O cliente, o mesmo que a contratou para matar o Catiça, gostou do portfólio (um site criptografado com vídeos de alguns assassinatos) da moça e quis um serviço novo; o pagante a mandou para essa pequena cidade na região rural da região rural de Feira de Santana para matar um traficante de drogas, que tinha como fachada, uma empresa de produção de polpa de frutas - que tinha como característica principal à falta de dentes - e confirmou que ninguém sabia da sua chegada. Ela mal colocou as malas no hotel, descansou e foi, à noite, para o bar; mal sabia ela que o seu alvo era um velho conhecido que a reconhecera.
- Sasá? É você muleca?
- Marcelinho? Meu Deus, não é possível! Como você veio parar aqui, menino?
- Sou um empresário. Estou trabalhando na produção de polpas de frutas na região. E você o que faz por aqui?
- Estou de férias e decidi percorrer a Bahia.
- Você tá linda, nega. Essa é a minha galera. Rapazes, Sandra; Sandra, rapazes - eles se cumprimentaram.
- O que aconteceu com seus dentes? - Sandra já sabia que ele era o alvo, por causa da sua peculiar característica.
- Perde tudo minha filha. Nunca gostei de escovar os dentes e comecei a fumar. Aí já foi.
Conversa vai e vem, ele a convidou para ir para sua casa. Era um sítio grande a poucos quilômetros da cidadezinha. A casa principal era pequena – dois quartos, uma suíte, banheiro e cozinha. Após alguns goles de licor de jenipapo, ela pede para ir no banheiro e nervosa, não percebe que um dos 12 caras a observa de um buraco pequeno na parede, em frente ao vaso sanitário e vê - além da genitália da Sandra - uma pistola no chão. Depois disso, todo mundo sabe: ela saiu do banheiro, eles fizeram perguntas, a renderam e levaram-na para um dos quartos; eles a amarram numa cama, bateram um pouco e tentaram matá-la; ela se soltou das cordas e matou todos os capangas depois de roubar as duas facas; por último, Sandra matou o Boca Nua enquanto ele se servia de mais licor na cozinha e falava no telefone: “Não imaginei que fosse uma amiga de infância. Porra, os caras confirmaram que ele tava armada com um .45 rapaz. Não me sinto b...” furo na barriga seguido de corte no pescoço. "Matei o Marcelinho. Pai, eu matei o Boca de Lixo, quer dizer, o Boca Nua, quer dizer, matei mais alguém. E com quem ele falava?", reverberava na sua cabeça, quando filmava o corpo da vítima - e perdeu o equilíbrio quando pisou no licor jorrado no chão e misturado com sangue esparramado na cozinha - e se preparava para por fogo na casa.
Sandra não aguenta mais chorar, sucumbe ao cansaço e dorme. Se não fosse isso, passaria a noite acordada. “O dia 07/05 é um dia de morte”, dizia baixinho, dormindo encolhida na cama do hotel. Amanhã é dia de ir embora o mais rápido possível para ficar com sua mãe e ouvir os sucessos do Tim Maia. A assassina precisa de descanso; a assassina precisa de um novo clareamento dentário.
Sanção Maia
31/07/2012