Era início de junho e Salvador estava abafada. A cidade, em pleno século XXI, mais parecia uma estufa: sol forte, chuvas esporádicas, calor insuportável. Ainda assim, naquela noite, tudo se tornou ainda mais quente, principalmente, na parte de baixo do viaduto do Aquidabã: um corpo, dois homens e uma longa história para se contar.
O ano era 2006 e mês era janeiro. Dois meses antes do fato trágico no Aquidabã, a vida do detetive Chaves e do seu sócio, o investigador Washington, era mais tranquila. Eles eram donos da Agência de Investigação Machado e Arco, com sede no Edifício Baiacu, apartamento 502, no bairro de Nazaré, Centro de Salvador. O período para trabalhos estava péssimo e o último caso foi um fiasco: o cliente chegar na sua casa e encontrar sua esposa, realizando uma dupla penetração, com as pessoas contratadas para vigiá-la não foi a melhor maneira de finalizar uma investigação. Claro que eles se gabavam por ter fodido a Letícia – uma morena linda de cintura fina, seios pequenos e bunda grande, casada com Gilmar, aposentado-corno, 75 anos, 53 mais velho que ela, mas eles precisavam sobreviver. Nem os ciganos, clientes habituais em momentos de crise da dupla, estavam procurando-os mais.
— Tem um cigarro aí, Washington?
— Não, agora só fumo charuto.
— Como é?
— Oxe, cigarro é pra otário.
— Aonde, pai. Você ainda tem uma carteira de Derby no bolso que tô ligado.
— Porra, toma essa merda. Charuto é mais presença.
O escritório fedia sempre a tabaco. De vez em quando tinha um cheiro de conhaque e uísque barato. A limpeza era feita por um amigo, sobrinho de ciganos, chamado Valdemir, que há dois meses não recebia e não ia trabalhar. O lugar, um quarto e sala com divisão para a cozinha, estava uma zona. As mesas e as cadeiras ficavam próximas à janela da sala estavam sem óleo de peroba e as crostas de poeira já as deixavam cinza; o chão de azulejo branco tinham várias manchas de cigarros, comida e pequenas poças de conhaque, cerveja e uísque; as duas janelas da sala – com uma linda vista para o Dique do Tororó – já assumiam a cor encardida e a da cozinha estava com problemas para fechar; a pia do banheiro havia entupido e fedia a esgoto, o chuveiro só tinha água fria, a privada branca tinha um tom amarelo mijo e o cheiro não era de pior por causa do Pinho Sol; a cozinha estava com problema em alguns pisos soltos, além da falta de gás e chão engordurado. Pelo menos a geladeira funcionava. Além disso, a luz estava cortada e o telefone sem linha. Só tinham água por causa Mirtes - ou melhor Dona Mirtes, a dona do prédio – que gostava deles e sempre tinha um “serviço extra”.
Já era quase 12h e a quentinha feita pela própria Dona Mirtes estava para chegar. Os tabacos estavam no fim. Três batidas na porta e o cheiro do feijão já impregnava a sala. Chaves grita para entrar e se surpreende: Gilmar havia voltado e com suas quentinhas em uma das mãos.
— Oxe, que onda é essa? Além de corno, virou entregador de quentinha? Vem ver Washington!
— Rapaz... Provoque fila da puta! tenho um proposta para vocês. Vocês querem dinheiro ou não?
— É o que corno velho? Quer chifre de novo? — Eles riram muito até Gilmar pegar uma arma e ameaçar atirar.
Após alguns minutos de “tenha calma”, “olha o coração” e “eu devia meter uma porra em vocês”, o visitante respirou fundo e contou a proposta. Passaram-se dez minutos e ambos andavam na sala enquanto o traído contratante os esperava. Era audacioso e perigoso. Ambos sabiam a necessidade de pagar as contas. Suas reputações ainda estavam se formando e tudo aquilo ia além das perseguições a maridos e esposas traidores, serviços sujos para ciganos ou cobranças violentas para Dona Mirtes. Com a grana conseguiriam ajeitar o escritório, pagar todas as dívidas e talvez, ampliar os negócios. Mas lidar com assassinatos, nunca aconteceu, nem quando eram da Polícia Militar – afinal, eles saíram da corporação por estarem cansados de correr atrás dos vagabundos que eles davam uns tapas e pra ganhar mais do que recebiam. Não que nunca tenham matado alguém, mas apenas em tiroteios por legítima defesa -, mas investigar um assassinato era diferente. Chaves via ali uma oportunidade de mostrar a suas habilidades e Washington, mesmo pesaroso, sabia que deveriam pagar o aluguel do escritório, do apartamento em que moravam – eles dividiam um apartamento - e o restante das contas. Foram vinte minutos de silêncio intercalado com cochichos, murmúrios até a decisão ser tomada. “Aceitamos Gilmar”, falaram em coro. “Precisamos saber as informações que você tem por agora. Queremos uma metade agora e a outra no final. Agora fala logo essa porra”.
— Meu antigo patrão é um homem muito rico. Ele conviveu com grandes políticos da nossa época. Trabalhava de motorista e segurança dele. Poucos sabem que ele é. Seu nome é Evandro de Bragança Gonçalves e foi o homem que cuidava da segurança dos governadores daqui desde 78. Ele começou com Roberto Santos e não parou mais. Fazia parte de um tipo de serviço secreto da Bahia. Ele parou quando o governo atual começou, pois se “aposentou”. Ele me contratou já trabalhando para ACM. O "cabeça branca" era quem sabia dar uns trabalhos da porra pra gente...
— Não começa a viajar e conta logo – Bradou, Chaves
— Sua mãe devia ter lhe dado educação! Atrapalhando os outros falar! Deus é mais! Bom, ele pode não trabalhar mais pro governo, mas não parou. Agora ele faz serviço particulares pra fazendeiros de interior, gente grande daqui da Bahia. O cara não fica parado. Eu fui braço direito do homi quando trabalhei e ele confia em mim. Era eu que fazia os serviços mais complicados. Seu Evandro precisa de gente diferente para tomar esse caso, pois se ele se envolver mais as coisas podem ficar complicadas. E vocês, mesmo me colocando chifre, descobriram que tinha outro com aquela vagabunda bem rápido. O trabalho é esse: encontrar esse cara da foto e descobrir se foi ele que matou essa mulher aqui. Depois disso tudo vocês podem fazer o que quiserem com o cara. A única coisa que Seu Evandro exigiu é que vocês façam um vídeo com o sacana confessando que matou ela – Gilmar, mostrou uma foto da vítima. A mulher era linda. Parecia uma boneca. Jovem, bonita, com cara de boa família. Era óbvio que os investigadores sabiam que era amante de Evandro e que ele não podia se envolver diretamente com isso. Mas, o porque, eles não sabiam.
— Diga o endereço que vamos no local do crime. Quando a gente terminar de almoçar, vamos até o local – disse empolgado Chaves.
Em menos de uma hora – após o feijão, uma cerveja e um banho - os investigadores já estavam próximos a Rótula do Abacaxi há caminho do Sítio Cavalo Sangue Puro. O Uno Mille – modelo 2001, de cor branca, e placa JCU-1619 – passava em alta velocidade na Avenida San Martin. Chaves e Wahisngton ainda não sabiam, mas muitas surpresas aconteceriam em apenas um dia. Certos que esse era um ótimo caso, eles acenderam um cigarro e um charuto e colocam uma música – eles ouviam muito Racionais Mc’s na época. Washington só assumiu meses depois que desde o momento que Gilmar entrou no escritório, ele sentiu um frio na espinha. Essa reação do seu corpo seria muito usada no futuro, mas naquele dia era apenas um mero “tique nervoso”.
- Acelera Chaves. Quero chegar em casa pra assistir a novela ainda.
- Aí é foda! Porra, novela? Você é puta, é?
- Rapaz, adiante!
- Vai dar tempo. Para ficar me aporrinhando, meu irmão. Fume outro charuto aí vá.
Eles não perceberam, mas há muito mais do que carros aleatórios por onde eles já passaram...
Sanção Maia
09/05/2013
Continua...
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